A GALINHA de Vergílio Ferreira (texto dramático)


A galinha
ELENCO

personagem
ator
Mãe Maria
Joana
Pai Manuel
Jérôme
Filho José
Bernard
Tia Joaquina
Daniela
Tio António
Fábio
Feirante Bia
Helena
Feirante Lubélia
Anabel
António Capador (homem da aldeia)
Antoine
Rui (homem da aldeia)
João
Rafa (homem da aldeia)
Lucca
Pedro (homem da aldeia)
Pedro
Corneta (homem da aldeia)
Vitor
Catrelha (homem da aldeia)
Alexandre
Bóia (homem da aldeia)
Samuel
Carapanta (homem da aldeia)
Vicente
1 guarda
Gabriel
1 tropa
Lara Imprizi



ATO I

(Na feira, dois casais da mesma família fazem as suas compras semanais. Há uma feirante e ouve-se um burburinho de fundo. Ambas as mulheres compram uma galinha de barro)

Cena 1

Feirante Bia: Ó freguês! Ó freguesa! Venha à banca da Bia e leva daqui alegria! Venha à banca da Bia que pensa em toda a família! Ó querida (dirigindo-se à Mãe Maria), estás a olhar para o tacho, meu grande borracho? Aproxima-te e compra que o tacho não morde! Vem ter com a Bia, é só economia!

(A feirante continua a feirar, gesticula mas baixa a voz para se ouvir a conversa entre a Mãe Maria e a Tia Joaquina, tanto a Mãe maria como a Tia Joaquina estão acompanhadas dos maridos)

Mãe Maria (surpreendida): Meu deus!!! Olha aquele tacho! É AGORA! Vou comprá-lo já.

Tia Joaquina (confusa): Queres comprar um tacho ou uma panela? Aquilo ali é uma panela!

Mãe Maria (para tudo o que está fazendo e olha surpreendida): Quero lá saber se é uma panela ou um tacho! Esquece lá isso! (afasta-se da Tia Joaquina e aproxima-se de outra feirante que vende peças de barro)

Feirante Lubélia: Olha o barro da serra, quem o compra ajuda a terra! Nada como o artesanato português a quem só lhe falta o freguês! Quem compra? Quem compra?

Mãe Maria (aparte): Que linda, esta galinha de barro! Ui aquele bico e aquela crista! Toda castanha. Até parece de chocolate! Que galinha engraçada! Parece que está a chocar ovos, ou a pô-los… Que vontade de comprá-la! Será cara? (dirigindo-se à feirante) Boa tarde! Diga-me uma coisa, essa galinha de barro, quanto quer por ela?

Feirante Lubélia: 20 mil réis menina, não arranja mais barato em lado nenhum! Isto é artesanato da serra!

Mãe Maria (pedinchando com cara de coitada, tentando negociar): Oiça lá, isso é um roubo pedir um preço desses? É só uma galinha de barro! 20 mil réis só se fosse de prata, e, e…

Feirante Lubélia: Ó querida, e eu como é que vivo? Do ar? Não pode ser… (vendo que a Mãe Maria dá meia volta para ir embora) Bem, vamos lá a ver, 18 mil réis. Pode ser?

Mãe Maria: Esta feira vai de mal a pior, tem dias que é uma roubalheira,,, Não se pode, minha Nossa Senhora! Ele é ver quem mais consegue roubar…

Feirante Lubélia: Olhe, tento na língua, chamar os feirantes de gatunos não se faz. A vida tá cara para toda a gente, ouviu! Que quer? Isto custa a todos! Só os que vão para fora se conseguem safar. Eu nem tenho fins de semana. Faço as feiras todas da região e olhe que com este frio de inverno não é pêra fácil de engolir!

Mãe Maria: Isso agora, isso agora é que também não é sempre assim como diz. Tantos que vão a salto e a coisa corre mal quando a polícia os apanha…

Feirante Lubélia: Olhe, e 12 mil e 200 réis, o que acha? Já estou a baixar muito, mas é por ser para você. Mais não posso, querida.

Mãe Maria: Tudo bem, temos de ser uns para os outros. Tome lá! E muito obrigada!

Feirante Lubélia: Longa vida pra si e para a galinha! (dirigindo-se à Tia Joaquina que se aproxima da sua banca) Ó rica, venha ver o lindo barro da serra da estrela, deixe-se tentar por este artesanato deste jardim à beira-mar plantado!

Tia Joaquina (com interesse): Olá boa tarde, quanto é que quer pela galinha?

Feirante Lubélia (direta): 20 mil réis!

Tia Joaquina (revoltada): Ui! Você pirou de vez! 20 mil réis? Quer que os roube. Não dou mais do que 5 mil réis por isso!

Feirante Lubélia (sorrindo): 5 mil réis? E eu trabalho para aquecer, não? 10 mil!

Tia Joaquina (regateando): 9 mil!

Feirante Lubélia (sorrindo): 8 mil!

Tia Joaquina (regateando): 7 mil!

Feirante Lubélia (sorrindo): 7 mil e quinhentos!

Tia Joaquina: Aceito! Negócio fechado! 7 mil e quinhentos e não se fala mais nisso!


Mãe Maria (assistiu a toda a cena e olha revoltada e de queixo caído): Minha alma está parva! Então? Tanta coisa para me baixar o preço e afinal…

Feirante Lubélia (tentando desculpar-se): Foi por ser a última, minha senhora!

Tia Joaquina (pegando nas duas galinhas e colocando-as lado a lado): Ó Maria, então não se vê que são diferentes? Galinhas diferentes, preços diferentes!

Mãe Maria (tom irónico): Sim, sim, a minha é diferente da tua por ter sido mais cara, deve ser isso! (rindo)

Tia Joaquina (levantando o tom de voz): Tu não vês que são diferentes? Então não se vê que a tua galinha tem o bico mais perfeito e o rabo também?

Mãe Maria: Isto é lá rabo que se compare?

(Começam a aproximar-se pessoas atraídas pela discussão entre as mulheres)

Tia Joaquina (levantando o tom de voz): Pelo amor de deus, mulher, não há comparação possível entre os dois rabos! Até a textura é diferente, a textura da tua é melhor!

Mãe Maria: Cala-te sonsa, as duas galinhas são iguais e ponto final! A conversa já cheira mal e acaba já aqui! Para lá com o sermão que eu gosto pouco de (ironicamente) trovoadas. E digo-te mais, se gostas mais da minha galinha, leva-a.

Tia Joaquina: Perfeito, então dá cá a tua galinha. Muito obrigada! Mas sempre te digo, olha que a minha é melhor, é mais dura. (bate na galinha) Basta bater-lhe assim para se ver que é mais forte.

Mãe Maria: Então se queres, fica com ela outra vez, mulher! De todas as maneiras as duas são iguais, nenhuma delas põe ovos e nenhuma delas se come…

Tia Joaquina: Não! Não! Trafulhices, não. Está trocada, está trocada! E mais nada! Isso querias tu voltar atrás no tempo, tipo Back To The Future! (rindo) Nem pensar! A mim não me enganas tu!

Tio António: A ga… (interrompido bruscamente pela mulher)

Tia Joaquina: Shht, não digas nada, homem! Isto é conversa de mulheres!

Pai Manuel (levando as mãos à cabeça): Ahhhh...

Mãe Maria (farta da discussão): Vamos embora, homem, com o António Capador, que ele já deve ter vendido o raio do porco.

Pai Manuel: Está bem, olha vamos até à carroça dele que já a vejo ali na curva, (virando-se para os tios) Vocês ainda ficam na feira?

Tia Joaquina: Ficamos sim, ainda temos que ir visitar a D. Aurélia, não lhe podemos fazer a desfeita de não a ir cumprimentar lá a casa. (tom de voz artificial) Mas olha, querida, fazes-me o favor de levar a minha galinha contigo? Assim, evito ter de andar com ela o dia inteiro debaixo do braço… ainda a parto e não ia ter piada nenhuma.

Mãe Maria (estendendo as mãos para pegar na galinha): Certo, eu levo-te a galinha e quando vocês regressarem batam-nos à porta de casa para a levar. Até logo!

Tia Joaquina: Até logo e obrigada pelo jeitinho!

Apagam-se as luzes.




ATO II
(Em casa dos pais do José, ao fim da tarde quando a Tia Joaquina vai buscar a galinha, depois da visita à dona Aurélia. Uma sala com uma mesa e quatro cadeiras; em cima da mesa estão as duas galinhas de barro)

Cena 1
(Ouve-se bater à porta e a tia Joaquina entra)

Tia Joaquina: Olá Maria, cá estamos finalmente.

Mãe Maria: Como estava a Aurélia?

Tia Joaquina: Estava benzito. Já não tem pernas para ir à feira, mas continua a gostar de falar pelos cotovelos. Ainda lá ficámos com ela uma boa horita. Bem, e a minha galinha?

Mãe Maria: Aqui a tens, (pega na galinha e estende-a à tia Joaquina) embrulhada tal como ma entregaste para a trazer. Não lhe toquei. Veio direitinha na carroça do António Capador.

Tia Joaquina (pega na galinha, desconfiada e olhando para a galinha da Mãe Maria já colocada em cima da mesa; vai avançando para a porta de saída e sem virar as costas para a Mãe Maria, diz com firmeza): Tu trocaste mas foi as galinhas.

Mãe Maria (pasmada de mãos erguidas para o céu): Louvado e adorado seja o Santíssimo Nome de Jesus! Então eu toquei lá na galinha! Então a galinha não está ainda conforme tu ma entregaste? Então tu não vês ainda o papel dobrado? Então não estás a ver o nó do fio?

Tia Joaquina (desabafando): Trocaste, trocaste. Mas fica lá com a galinha, que não fico mais pobre por isso.

Mãe Maria (cheia de compreensão mas firme): Pois fico com ela, não a quisesses trocar. Só tens gosto naquilo que é dos outros. (a Tia Joaquina detém-se à porta de casa e vai berrando o que pensa)

Tia Joaquina: Nunca pensei que tentasses enganar-me. Nunca fiando em ti. Eu se fosse a ti tinha vergonha.

Mãe Maria: O quê? Continuas a conversa das galinhas? Já te disse que não toquei na tua galinha, caramba!

Tia Joaquina: E achas que acredito em ti, sua ordinária? Cala-te que já não te posso ouvir. Estás coberta de inveja! Nunca pensei!

Mãe Maria: Então diz-me lá uma coisa, a tua galinha tem asinhas, patinhas, olhinhos, e biquinho?

Tia Joaquina (abrindo um pouco do embrulho como que a verificar): Tem sim. Querias que tivesse o quê? Se é uma galinha, tem de estar aviada dessa forma!

Mãe Maria: Pois olha, ficas a saber que a minha tem também asinhas, patinhas, olhinhos e biquinho, e sabes tu porquê? (a Tia Joaquina não responde mas põe uma cara de incompreensão de tal forma a pergunta lhe parece disparatada) Pois olha, minha ordinária: porque as galinhas são iguais!!!! Estou farta desta conversa, chega! Sai-me da vista! Desanda, se não ainda digo o que não quero! (faz menção de fechar a porta de casa onde se deu esta discussão)

(A tia Joaquina cruza então Pai Manuel que vem a entrar em casa e trocam umas palavras algo azedas)

Pai Manuel: Olá, comadre, o que há? Vem com cara de poucos amigos!

Tia Joaquina: O que há? Faça-se de novas e pergunte-me o que há que eu respondo-lhe em três tempos! Eu e a sua mulher comprámos ambas uma galinha na feira e ela, só porque gosta do que é dos outros não para de mexer na minha galinha e de a trocar pela galinha dela. Tá casado com uma mentirosa é o que é!

Pai Manuel: Mentirosa é você! Mentirosa é você e sempre o foi. Já quando você contou a história do Corneta, andou a dizer que…

Tia Joaquina: Mentiroso é você como sua mulher. Uma vez na padaria a sua mulher disse que…

Pai Manuel: Mentirosa é você. Já quando você contou a história da sua velha amiga, aquela Bernarda, andou a dizer que tinha ressuscitado...

Tia Joaquina: Então e quando a sua mulher, uma vez na padaria, disse que o Paulo Antunes era açoriano e vai-se a ver era um alentejano de gema?   

Pai Manuel: O QUÊ ?! E no ano passado, quando você disse que viajou no tempo num carro DeLorean? Acha que a malta da aldeia é otária? Acha? Conta-nos as suas intrujices e depois os outros é que são mentirosos…,

Tia Joaquina: Você é pior! Disse que tinha estudado filosofia com um tal Vergílio Ferreira. Vai-se a ver e o homem é mas é escritor…

Pai Manuel: Pouca importa! Aos quinze anos, lembra-se do que disse sobre o cágado do seu marido. Eu recordo, você disse que… (chega o Tio António da rua, vinha buscar a mulher pois há muito que a esperava)

Tio António (gritando): Eeeeeeeeeeeeeeeeee! Joaquina! Estou há que séculos à tua espera! O que é que se passa aqui? Já tens a galinha?

Tia Joaquina (para o marido): O António insultou-nos e acusou-me de ser mentirosa

Pai Manuel (irόnico): Nunca ousaria…

Tio António (arregaçando as mangas e cerrando os punhos): Não permito! Atenção que eu dou cabo de ti. (aparte) Eu mato-o, eu mato-o.

(O pai não reage como se ficasse à espera que o Tio António o matasse. O Tio recua uns passos e tapa os olhos)

Tio António: Foge da minha vista que eu mato-te. (Olha à volta dele à espera que outros homens o segurassem para o impedir de fazer uma loucura, arregaça as mangas de novo e ergueu os punhos) Que ninguém me tente segurar! (quatro homens acabam por segurá-lo, o Tio António debate-se querendo libertar-se para matar o Pai Manuel, mas não consegue. Os outros arrastam-no para longe)

Corneta, Rafa e Pedro (segurando o tio e gritando-lhe): Eeee! Para! Para! Acalma-te!

Tio António (tentando libertar-se): Deixem-me! Deixem-me que eu mato aquele cabrão! Mentirosa é a tua mãe! Se me voltas a aparecer à frente, dou-te um ensaio de porrada! Vais ver o que é bom para a tosse!

Apagam-se as luzes.



ATO III

(Poucas semanas depois, na praça central da aldeia, onde todos se cruzam e onde ocorrem os ajustes de contas)

Cena 1
(Dois bancos de jardim, no meio da praça o pelourinho. Num dos bancos está o Tio António e no outro banco o Pai Manuel. Cada um está rodeado dos seus apoiantes/amigos e a discussão rebenta de novo. Catrelha, Carapanta, Rui e Capador integram o partido do Pai Manuel. Rafa, Pedro, Corneta e Bóia integram o grupo do Tio António. Alguns seguram uma garrafa na mão, vê-se que começam a estar bêbedos e a falar em voz alta)


Pai Manuel: Já não posso olhar para o António. Cada vez mais mentiroso, pá! Mete nojo!

Catrelha: Já sabes o que se passou no domingo passado? Houve facadas!

Carapanta: A sério?

Catrelha: Sim. Mataram dois homens e feriram outros quatro. (olhando desconfiado para o Corneta)

Corneta: Tá a olhar para mim porquê? Há algum problema? Dói-lhe alguma coisa?

Catrelha: Olhe, sabe que mais? Não me provoque que eu vou-lhe já às trombas!

Corneta: Se me dói alguma coisa? Então, já se esqueceu daquela nossa questão das águas? Tem a memória curta, tem! Mas eu avivo-lha!

Rui: Ó pá, parem lá com isso, senão a gente engalfilha-se outra vez. (bebe uma golada de vinho) Este ambiente nunca mais ficou o mesmo desde que as mulheres do Manuel e do António tiveram uma quezília por causa das galinhas de barro.

Carapanta: A cena das galinhas… No outro dia ouvi dizer que o Bóia disse que tinha sido o Capador que as trocou depois da feira, quando deu boleia à Maria e ao Manuel. Fez-lhes esse jeitinho e agora é acusado de ter trocado as galinhas. Isto disse o Bóia ali na taberna, no outro dia! Eu não tenho nada a ver com isso, mas ouvi, com estas orelhas que a terra há de comer!!! Mas pronto, não é nada comigo! Eu disse isto e não disse nada! E se alguém disser que eu disse, eu nego!

Bóia: Olhe, seu Carapanta, deixe de ser cobarde, é o que lhe digo! Eu sou capaz de repetir o que disse na taberna, sabe? A cena das galinhas, nunca ninguém me enganou! Eu tenho pra mim que o Capador tem alguma coisa a ver com a troca das galinhas! Aquele gajo desde que me capou mal um porco nunca mais acreditei nele. Um grande aldrabão, isso é que ele é! Uns achando que a Maria é que era mentirosa, outros achando que a mentirosa era a Joaquina e eu tenho pra mim que o grande mentiroso desta história toda é o Capador que nunca soube capar e mais não digo que é para não me enervar. Já me está a chegar a mostarda ao nariz…

Capador (dirigindo-se para o Bóia, arregaçando as mangas e dando-lhe um empurrão): Oiça lá, a conversa chegou à cozinha? Você acha que pode largar essas bujardas assim, de qualquer maneira e dar cabo da minha reputação? Então agora fui eu que troquei as galinhas? Eu tenho as costas largas, tenho! (dá-lhe mais um empurrão) A verdade é que você sempre teve inveja de mim e como nunca gramou o António tá-se a aproveitar desta cena para pôr todos contra mim. Arrebento-lhe o focinho e mais alguma coisa, se não se cala! Tá a ouvir? ( mais um empurrão no Bóia que se desequilibra e quase cai)

Tio António (entrando na discussão): Ah, ah! Isso não me espanta nada! O Bóia desde aquela história de mordomia do mártir São Sebastião nunca mais me pôde ver. (dirigindo-se ao Bóia) Oiça lá, Bóia, não misture alhos com bugalhos. Não me misture as galinhas com S. Sebastião. Até porque, nessa cena do mártir S. Sebastião, quem tinha razão era eu. E você teve de amochar e…

(começam todos a lutar, ouvem-se gritos e assobios, há facadas e sangue, chega a polícia e a tropa com algemas. O Carapanta pega numa arma, dispara para o Tio António, que leva a mão ao coração, mima um som de dor e cai.)

Rafa (tentando fugir do Carapanta): O que estás a fazer, cabrão? (O Capador  atravessa-se na sua frente e tenta dar-lhe uma facada, mas o Rafa  consegue escapar ileso. O Capador tenta atacar o Pedro, depois o Corneta e depois o Bóia. Os dois grupos ocupam os dois lados opostos do palco e insultam-se mutuamente)

Grupo de esquerda, apoiantes do Pai Manuel: Vamos matar-vos, vamos matar-vos!

Grupo de direita, apoiantes do Tio António: Não vão fazer-nos nada, pá! Vocês não valem um tostão furado!

(andam uns sobre os outros, alguns caem ao chão, feridos, outros mortos. A cena acaba no meio desta confusão)


ATO IV

(Em casa do Filho José que se encontra sozinho na sala de estar e se prepara para arrumar tudo na sequência da morte da mãe. Repara em toda a cacaria e vai arrumando em caixotes comentando a inutilidade de tudo. Vê-se a galinha de barro no meio da mesa da sala)

Cena 1

Filho José: Isto a morte dos pais é sempre muito doloroso. E então quando se é filho único pior um pouco! (suspiro) Vamos lá a ver se desmonto esta casa rapidamente e se levo o que a herança me deu. (vai olhando e pegando nos objetos – louça e metal, livros de missa, vasinhos - e colocando num caixote) A minha mãe foi acumulando com os anos tanta cacaria, tanto biblô inútil e que só serve para criar pó e alimentar alergias… Não quero nada disto pra mim. A ver se dou isto a alguém… Que hei de fazer eu com tanto santo? Sou ateu, nunca percebi nada de santinhos e de santinhas, pra que serve esta hierarquia celeste? Só uma beata é que gostaria de receber isto. (irónico) Acho que deixo o caixote em frente da igreja, alguém há de pegar nos santinhos…

(Tocam à porta de casa, Zé vai abrir. É a tia a chorar, aos gritos; tem um cabaz no braço – dentro do cabaz tem a sua galinha de barro que não se vê. Abraça o Zé, fingindo que está chorando.)

Tia Joaquina: Aiii, meu filhoo! Venho dar-te os pêsames pela morte da tua mãe! Aiiii… Meu filho, que perda enorme…

Filho José (fá-la sentar): Acalme-se tia. É a vida! É triste mas é a vida. Todos temos a morte certa, não há como escapar!

Tia Joaquina (sempre num tom muito teatral e exagerado): Olha, filho, o que lá vai, lá vai! E só Deus sabe o que tenho chorado e rezado pela tua mãe.

(Zé fica calado e seguem-se uns minutos de silêncio)

Tia Joaquina (hesita): Ai!... (silêncio e suspiro de Zé) Ai!.. Olha, meu filho, eu tinha uma coisa a pedir-te. (Zé olha para ela como quem começa a perceber ao que vem a tia Joaquina) Tu sabes, enfim, como foi o caso da galinha. A tua mãe, que Deus tenha…

Filho José (interrompendo-a): Quer a galinha? Leve-a.

Tia Joaquina (colérica e levantando o tom de voz): Não a quero! Não quero o que é teu! Quero só, só o que é meu! (baixa o tom, e diz envergonhada) Queria só que ma trocasses. Trago aqui esta. (Tira a sua galinha de barro do cabaz e coloca-a ao lado da outra galinha que está desde o início da cena em cima da mesa da sala)

Filho José (farto da situação e sorrindo): Leve as duas, tia Joaquina!

Tia Joaquina (alçando o tom) - Não quero o que é teu! Já to disse e repito!

Filho José (sorrindo de novo, com alguma paciência de circunstância): Deixe então essa e leve a outra.

Tia Joaquina (baixa os olhos, mais sossegada): Obrigada, filho.

(José abre a tampa da galinha que era da mãe e começa a tirar tudo o que lá estava dentro – estampas, carros de linha, agulhas, amostras de fazenda quando, de repente, a tia leva as mãos à barriga e olha para o Zé com um ar aflito de quem tem de ir urgentemente à casa de banho)

Filho José: Ao fundo do corredor, veja se há papel.

(a tia sai toda torcida com as mãos na barriga. José continua a esvaziar a galinha, a última coisa que vê é uma estampa de Santa Bárbara) que se prepara para deitar fora)

Filho José (aparte): Olha quem ela é, a estampa da Santa Bárbara! Isto só pode ser ironia do destino! Depois de tanta confusão, descobrir que a minha mãe pediu a proteção desta santa para nada… razão tenho eu de ser ateu. He, he! Afinal a santinha Bárbara não protegeu das tempestades nem das trovoadas. Andaram todos aos murros e às facadas, a santinha aqui encurralada dentro da galinha… às tantas fez greve, passou-se com esta asneirada toda… sinceramente! (irónico e voltando a colocar a estampa dentro da galinha) Olha, vai ficar aqui. A tia Joaquina vai levá-la como brinde do sobrinho! (a tia Joaquina regressa nesse instante, mais calma e o Zé anuncia-lhe) Vou buscar papel para embrulhar.

Tia Joaquina: Ó filho, não te maces com isso, não é preciso. Eu ponho aqui no meu cabaz. Vai muito bem assim! (tão depressa o disse, mais depressa o fez para logo rapidamente se despedir do José e sair porta fora, abraçando e chorando o sobrinho) Muito obrigadinha, filho, Deus te abençoe!

(José volta para junto da mesa, abre a galinha e levanta um martelo no ar, com a fúria na cara, pronto para despedaçar a galinha, mas para e abre muito os olhos com o que vê dentro da galinha: retira a estampa de santa Bárbara que abana no ar com a cara incrédula)

Filho José: Raios partam a tia! Que mulher! E já agora raios partam a santinha também!!!! (começa a rasgar, com fúria e ódio, a estampa em papelinhos miudinhos que vai espalhando pelo chão)


Cai o ano.

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