O JANTAR DO BISPO de Sophia (texto dramático)


O jantar do Bispo
ELENCO

personagem
ator
Padre Judas
Lucca
Padre Cristiano
João
Dono da Casa, Camilo
Manuel + Luidgi
Paroquianos (6) pobres
Thaïs + Anabel + Chloé + Samuel + Fábio + Gabriel
Constância (convidada)
Giovanna
Mónica (convidada)
Alice
Antunes (convidado / figurante)
Jérôme
Diniz (convidado)
Vicente
Henrique
Victor
Simão (convidado)
Samuel
Empregada Dalva
Léa
Bispo Angélico
Pedro
Empregado Jacinto
Hugo
Primo Pedro
Raphaël
Sacristão Alfredo
Mattéo
Dona da Casa, Juvenália
Gabriela
Francisco (convidado)
Antoine
Cristina (convidada)
Anabel
Homem Importantíssimo,
Henrique de Távora e Mascarenhas
Rúben
Filho dos Donos da Casa, João
Nelson
Prima Conceição
Chloé
Baltazar 8convidado)
Lara Imprizi
Prima Ana
Thaïs
Prima Mariana
Lara
Deus (voz off)
Hugo





ATO I
(Na igreja, durante a missa dominical. O Padre celebra a missa na presença do Dono da Casa, Camilo, e de outros paroquianos. A diferença social entre o dono da casa e os paroquianos é flagrante, vê-se nas roupas e na forma como se expressam e comportam.)

Cena 1
(Na igreja, vê-se o altar, a cruz, velas e bancos; o padre de Varzim diz a homilia diante da assembleia liderada pelo dono da casa à frente com o seu lugar reservado e pelos paroquianos, estão todos desatentos)

Padre Judas (discurso monótono, sem energia, fastidioso marcado pela lentidão, o padre nem olha para a assembleia, olha mais para o céu): Irmãos, temos de ser pacientes nesta vida. Se vivemos em sofrimento é porque Deus assim o quer. Aceitemos o sofrimento com resignação, saibamos aceitar os desígnios de Deus esperando um mundo melhor que há de chegar quando deixarmos esta terra.

Dono da casa, Camilo (aparte): Ui, que conversa esta. Aceitar o sofrimento? Caramba, tenho uma vida deliciosa, tudo me corre às mil maravilhas. Quanto mais tarde morrer, melhor. Qual esperança no paraíso, qual carapuça! Aposto que no paraíso não há bom vinho do Porto, nem uma boa feijoada… (fixando o olhar no teto da igreja) Ó diabo, o que é aquilo? A pintura está toda estilhaçada. Talvez seja agora que alguém vem retocar o anjinho rosinha que tanto me enerva, ali à volta da Nossa Senhora… (ouve-se o choro de uma criança e volta-se para trás até a criança parar de chorar) Estes miúdos são um desassossego!!! Por falar em desassossego, desassossegado estou eu por causa das vindimas deste ano, duvido que a venda do vinho seja muito rentável… ainda por cima vou ter de comprar mais sulfato…

Padre Judas (termina a homília): Por isso irmãos, saibamos aceitar a palavra de Deus e vivamos resignados mais esta semana que agora se inicia. Amen.


Apagam-se as luzes


Cena 2

(Na igreja, vê-se o altar, a cruz, velas e bancos; o novo padre de Varzim termina a leitura do evangelho que quando termina convida os crentes a sentarem-se para ouvir a homilia e vai pontuando o que diz com alguns “pois” ligeiro sorriso no canto da boca). Ouve-se o canto de Aleluia que se apaga quando o padre começa a ler o evangelho.

Padre Cristiano: «Disse depois, a quem o tinha convidado: “Quando deres um almoço ou um jantar, não convides os teus amigos, nem os teus irmãos, nem os teus parentes, nem os teus vizinhos ricos, não vão eles também convidar-te, por sua vez, e assim retribuir-te. Quando deres um banquete, convida os pobres, os aleijados, os coxos e os cegos. E serás feliz por eles não terem com que te retribuir; ser-te-á retribuído na ressurreição dos justos.» Palavra do Senhor.

Paroquianos (juntos): Graças a Deus.

Padre Cristiano: Meus irmãos, podeis sentar-vos. (começa a ouvir-se em música de fundo um canto gregoriano que acompanhará a cena até ao fim) Aqui, nesta igreja, da nossa pequena aldeia de Varzim, estamos reunidos para celebrar a missa dominical. Depois da leitura deste evangelho, o evangelista Lucas recorda-nos que o Senhor está com os pobres e necessitados e por isso queria aproveitar para vos fazer um apelo. (pausa) A nossa terra é pobre...

Paroquianos (juntos): Mas rico é nosso vinho!

Padre Cristiano: Pois. Nossa terra é pobre e duro é o trabalho no campo. Alguns de vós trabalham e não usufruem do vosso labor. A nossa população é pobre...

Paroquianos (aparte): E o nosso inverno é duro!

Padre Cristiano: Pois. O nosso inverno é duro e a população tem dificuldades em passá-lo. E por isso faço aqui um apelo para que todos se ajudem uns aos outros...

Dono da casa, Camilo: (sentado na fila da frente, num aparte) Ajudar? Eu que já ajudo os pobres da aldeia, dou refeições e ofereço hospitalidade?! Não deve estar a falar comigo

Padre Cristiano: Nunca se esqueçam que a justiça dos homens não é igual à justiça divina! Deus não esquece os homens e está ao lado dos que sofrem, não esquece os tuberculosos que cospem sangue, não esquece os velhos sem sustento, não esquece as crianças raquíticas, não esquece os loucos nem os cegos, não esquece os coxos que pedem esmola nas estradas. Em resumo: não esquece as dificuldades da nossa pequena aldeia!

Paroquianos (aparte): Às vezes parece que se esquece mesmo de nós. O sofrimento é tanto…

Dono da casa, Camilo (aparte): Justiça divina? Mas eu já tenho lugar no paraíso! Não preciso da justiça de Deus! Estou muito bem com a nossa justiça aqui em baixo, neste terreno do Douro que tão bom vinho me dá! Caridade? Tenho lá culpa dos tuberculosos que cospem sangue… tenho lá culpa que haja velhos sem sustento… tenho lá culpa que existam crianças raquíticas… tenho lá culpa que haja cegos e loucos… tenho lá culpa dos coxos que pedem esmola nas estradas… não me faltava mais nada! Só porque herdei o que tenho, agora tenho de tratar dos males dos outros? Agora tenho de ser caridoso porque sou rico, olha-me o discurso do padrolas!

Padre Cristiano: Deus escreve certo por linhas tortas! Nunca se esqueçam que os caminhos do Senhor são insondáveis! Por isso, amem! Partilhem! Protejam! E lembrem-se, Deus está sempre connosco! Nunca nos abandona! Mais cedo ou mais tarde a justiça divina far-se-á. Mas nós aqui na terra já podemos começar a ajudar-nos uns aos outros. Não podemos ignorar os que sofrem, irmãos! É tempo de agir!

(Apagam-se as luzes)




ATO II

(No presbitério da igreja, depois da missa, vemos o Padre de Varzim que retira os paramentos e o Dono da Casa que entra e começa a falar com o pároco.)


Cena 1
Dono da casa, Camilo: Olá senhor Padre, como está?

Padre Cristiano: Bem obrigado. E o senhor Camilo? Gostei muito de o ver na missa. É sempre bom escutarmos a palavra do Senhor aos domingos. Ajuda-nos a viver santamente a semana.

Dono da casa, Camilo: Sem dúvida que sim. Por isso a qui venho com muito prazer, senhor padre.

Padre Cristiano: Ainda bem que aqui veio, pois gostava de lhe falar das contas que tem com o caseiro…

Dono da casa, Camilo: Ah, esse caseiro anda a passar dos limites! Padre, eu pensava que o seu ofício era ocupar-se de rezas e não de contas. Os problemas morais pertencem-lhe e os problemas práticos são comigo. Peço-lhe que deixe César ocupar-se do que é de César. Eu na sua igreja não mando: só assisto e apoio. O problema do caseiro que estamos a discutir é meu, é do mundo, é um problema material e prático.

Padre Cristiano: Ó dom Camilo, a nossa própria fome é um problema material e prático? E a fome dos outros é um problema moral.

Dono da casa, Camilo: Hum, sabe senhor padre, não o quero ofender, mas há direitos que tenho há muito tempo e não me parece aceitável que se venham agora contestar. Ainda por cima por um parente afastado…

Padre Cristiano: Não vou negar a nossa ascendência comum, mas como deve saber há muito que rejeitei a herança da família para viver ao lado dos mais pobres. Foi uma opção de vida…

Dono da casa, Camilo: Uma opção de vida ridícula! Um homem de boas famílias se vai para padre deve ser…

Padre Cristiano: Bispo, Núncio ou até Papa!

Dono da casa, Camilo: Ora se até sabe, por que não enveredou por esse caminho? É inadmissível que não o tenha feito! Agora andar por aí todo roto, armado em pobrezinho, com cara de esfomeado… isso lá é vida? Com todos os frangos, as nozes, as uvas e as peras que lhe costumo mandar regularmente não sei como é que consegue arranjar esse ar miserável…

Padre Cristiano: Mas, dom Camilo, agradeço desde já tudo o que me envia mas saiba que o destino é a mesa dos pobres que ficam radiantes com o que nos manda (Camilo abre a boca surpreso com o que ouve)

Dono da casa, Camilo: Não é possível! Então eu ando a alimentar essa gente para o padre andar esfomeado. Você sente-se bem, primo? Não será melhor consultar?

Padre Cristiano: Camilo, não me chame primo, peço-lho encarecidamente! A minha entrada no seminário significou a minha morte para a vida mundana. Desde esse momento somos irmãos em Deus, Camilo!

Dono da casa, Camilo: Mas oiça, continuo a achar que não é nada normal não saber apreciar um bom vinho, a boa comida… Quando vejo uma pessoa descurar esses prazeres da vida percebo que só pode ser louca e pretensiosa. Olhe, você com essa recusa dos prazeres da boca até é um perigo para a sociedade.

Padre Cristiano: Eu? Um perigo para a sociedade? Porque não aprecio as artes culinárias??? Não pode estar a falar a sério, Camilo! Mas olhe, não se preocupe comigo que eu estou bem. E só lhe posso agradecer permitir-me partilhar comida com os que não a têm. O meu prazer é esse!

Dono da casa, Camilo: Mas ó homem, repito-lhe que essa sua cabeça não está bem, temos de ver isso a sério. E já agora, diga-me se é verdade o que ouvi por aí: consta que você também dá as couves da sua horta e as uvas da sua parreira aos pobres. É verdade? Não é, pois não? Isso é boato, certo?

Padre Cristiano: Confirmo-lhe que dou tudo o que tenho. Até o leite da minha cabra tem lugar nos copos dos pobres. É uma felicidade alimentá-los. Se um dia quiser experimentar esta partilha vai ver como nos sentimos tão bem por dar aos outros o que temos.

Dono da casa, Camilo: Olhe, de si, não tenho lições a receber. Aqui na terra, se há alguém que dá aos outros, sou eu!!! Só faltava agora que não soubesse disso. (parando para coçar a cabeça) Pensando bem, tenho de ver se o jornal ‘Notícias da Terra’ dá eco dessas minhas benesses, se calhar é por isso que o senhor padre não sabe… eu dou as esmolas regulamentares! (ouve-se bater à porta e o padre sai para ir abrir e voltar com Lúcio sem pernas, o Manuel sem braços, o Quintino cego, a Joana surda, e a Maria Louca)

Padre Cristiano: Senhor Camilo, se não tem mais nada a dizer-me, vou pedir-lhe que se retire porque vou agora almoçar com estes meus paroquianos.

Dono da casa, Camilo (põe uma cara de desprezo e de incredulidade): Com certeza que me vou embora, já estava de saída mesmo e o ar tornou-se de repente irrespirável para mal dos meus pecados!

Padre Cristiano: Volte sempre, senhor Camilo. A casa de Deus tem sempre as portas abertas para o receber!


Apagam-se as luzes.



ATO III

Cena 1
A mesa dos pobres em casa do dono da casa. Camilo entra na cozinha, com um ar perturbado e incomodado. Vemos uma grande mesa com pobres sentados e a serem servidos pelos criados, Jacinto e Dalva. Têm, cada um, um prato de sopa, pão e vinho na mesa. Estão mal vestidos, sujos com lama e poeira, cheiram mal, com ar doentio – alguns ranhosos, outros não parando de tossir)

Dono da casa, Camilo: Dalva traga-me um chá, por favor. Estou mal disposto. Os sermões do novo padre…

Criado Jacinto (servindo os pobres à mesa mas falando com Camilo): O que acha do novo padre?

(Dalva entra e serve o chá a Camilo que agradece com a cabeça)

Dono da casa, Camilo: Ai! O homem irrita-me. É maluco, desafia a ordem estabelecida, o uso e o costume. Aquilo já nem é virtude! O homem propõe mas é desordem, anormalidade. Olhe, Jacinto, propõe-nos o bolchevismo. Não aguento mais aqueles sermões de paciência e resignação. E esperança num mundo melhor depois da morte…

Criado Jacinto: E não acredita num mundo melhor?

Dono da casa, Camilo: Claro que não! Nenhum mundo pode ser melhor do que este.

Criado Jacinto: Nem mesmo depois da morte?

Dono da casa, Camilo: Ai por favor, Jacinto! O objetivo é viver o máximo tempo possível por estas bandas, porque depois da morte duvido muito que haja uma vida melhor do que esta. Os sermões deste padre não me interessam nada, mas irritam-me. Antes eu conseguia ver as pinturas no teto da igreja e pôr as ideias em dia sobre os meus negócios! Mas agora, com estas ideias de caridade… nem sequer dá para fingir que não oiço nada. Aquilo é demais! O homem tem que se calar…

Criado Jacinto: Ah estou a perceber, não tem a mesma visão do padre sobre a caridade…

Dono da casa, Camilo: Claro que não, um monte de baboseiras... E então essa ideia de ajudar os pobres tem muito que se lhe diga. Ele nem sabe o que são pobres…

Criado Jacinto: Como assim, o padre não sabe o que são pobres?

Dono da casa, Camilo: Claro que não sabe, ora veja Jacinto: o Manuel que não tem braços, é pobre! O Lúcio que não tem pernas, é pobre! O Quintino que é cego, é pobre! A Joana surda, viúva e centenária, é pobre! A Maria louca, é pobre! Mas o Pedro da Serra, esse mânfio não é pobre!

Criado Jacinto: Oh, o Pedro da Serra até que… Ó dom Camilo, tem nove filhos e só ganha quinze mil réis por dia a cavar…

Dono da casa, Camilo: Então, está a dar-me razão, Jacinto! Aquele mânfio não é um verdadeiro pobre! Aquele mânfio tem um salário e dois braços para trabalhar. Será que só eu consigo ver que ele não é pobre? Caramba! Salta aos olhos! Só não vê quem não quer! Estou a ver que tenho de o levar ao oftalmologista com o padre, ó Jacinto!

Criado Jacinto: Tenho a impressão de que tudo isto o perturba, dom Camilo.

Dono da casa, Camilo: Aquele padre inventa os mandamentos de Deus...

Criado Jacinto: Então já não acredita em Deus?

Dono da casa, Camilo: Claro que acredito em Deus! É só que a minha fé está baseada na boa educação e no respeito das leis estabelecidas. Dou esmolas aos sábados, vou à missa a horas… (pousa o olhar na mesa dos pobres que foram sendo servidos e foram comendo durante a conversa com o criado Jacinto) Abro a minha casa aos pobres e ofereço-lhe esta mesa! Quem faz mais nesta terra? Diga-me, Jacinto!

Criado Jacinto: Pois ninguém, senhor Camilo, ninguém faz mais do que o senhor! Esta sopa que lhes dá, este pão e este vinho são uma riqueza para estes miseráveis. É pena a igreja não beatificar o senhor Camilo! Este país não muda. Só se reconhece o valor das pessoas depois de morrerem!!!

Dono da casa, Camilo: Pois, pois, agora é que resumiu muito bem a situação, Jacinto. (pequena pausa) Ó Dalva, já pôs a moeda do costume em frente do prato da sopa?

Criada Dalva: Não senhor camilo, vou já fazê-lo! (e tira as moedas do bolso do avental que coloca prontamente diante de cada prato da sopa para logo em seguida os pobres pegarem na moeda e arrumarem nos seus bolsos)

Dono da casa, Camilo: Isso. Agora penso que já podem ir embora. Tiveram alimento para uma semana. (pausa, faz menção de sair da sala dirigindo-se aos dois empregados) Bem, Jacinto e Dalva, não se deitem hoje sem começar a preparar o jantar do Bispo de amanhã! Quero o serviço impecável. Nada pode falhar! Convidei-o porque valores mais altos se alevantam. O Bispo Angélico vai ter de me ajudar! Ainda não sei bem como, mas vai ter de me ajudar!

Apagam-se as luzes.



ATO IV

O dono da casa, Camilo está sentado na sala de estar. Vemos uma lareira, buffet frio, velas, moldura, cadeiras. É de tarde e os criados preparam a mesa para o jantar do Bispo dessa noite. Camilo tem um copo de uísque na mão que bebe, saboreando, e pavoneando-se observando os quadros afixados na sala e a roupa que enverga. De repente batem à porta e a criada Dalva vem anunciar a visita do primo Pedro que Camilo convida logo a entrar)

Cena 1

Criada Dalva: O senhor seu primo Pedro chegou. Posso mandá-lo entrar?

Dono da casa, Camilo: Com certeza, Dalva. Ele que entre. (Dalva volta com o primo Pedro e volta a sair deixando os dois homens a sós)

Primo Pedro: Ora viva, primo Camilo! Estava de passagem e resolvi vir cumprimentá-lo. Está bom?

Dono da casa, Camilo (aparte): Deve ter-lhe dado o cheiro do jantar do Bispo… a ver se o despacho que se ele cá fica, dá-me cabo do jantar! (dirigindo-se ao primo) Estou bem obrigado! Vou buscar um uísque para si! E o primo? Está com ótimo aspeto! Não envelhece!

Primo Pedro (olhando para a sala fixando o olhar nos quadros de família, enquanto Camilo lhe vai buscar um copo de uísque): Ora, não que não envelheço, envelheço sim! (pausa) Quando olho para estes nossos antepassados dá-me uma saudade… tenho pena de ter feito a mesma coisa que o meu avô e o meu pai: vender todas as casas, todas as quintas e todos os campos, vender todos estes quadros que nos recordam os nossos ilustres antepassados… (abana a cabeça em jeito de remorso) Que grande asneira a nossa!

Dono da casa, Camilo (voltando com o uísque que estende ao primo): Primo Pedro, ao mesmo tempo vocês estavam arruinados. Foi uma forma de arranjarem dinheiro, sem trabalhar, ficando ainda tudo na família. Já sabe que pode sempre cá vir matar saudades!

Primo Pedro (tom surpreendido e algo irónico): Mas que vejo eu? O seu retrato?

Dono da casa, Camilo: É costume na família, como o primo Pedro sabe, cada nova geração deixar aqui o seu retrato. Por isso já aqui está o meu. Gosto de continuar as tradições!

Primo Pedro (tom divertido): Fez muito bem, Camilo! Fez muito bem! Em contrapartida o seu retrato contrasta bastante com o ar austero dos outros retratos…

Dono da casa, Camilo: Ao mesmo tempo isso não surpreende, é verdade que eles são mais parentes seus do que meus. Mas isso não me preocupa! Gosto mesmo é que estejam aí na parede a decorar a sala com esse ar bem educado e simpático, o resto é um detalhe.

Primo Pedro (detendo-se no retrato do avô de Camilo): O seu avô e o meu, que homens tão diferentes! O seu avô casou com a filha dum negreiro ou com a filha dum agiota?

Dono da casa, Camilo: O meu avô casou com a filha dum negreiro e o meu pai com a filha dum agiota. Daí veio a riqueza da família. Graças a eles é que tenho as amizades que tenho: gente da alta finança, membros dos concelhos de administração… o dinheiro não cai do céu, primo Pedro.

Primo Pedro: Sim, de facto o meu avô e o meu pai fizeram outro tipo de casamento…

Dono da casa, Camilo: Quando se escolhe casar com uma atriz romântica e com uma parente arruinada, estava bom de ver que o resultado não ia ser o melhor…

Primo Pedro (pensativo): Sim… depende do ponto de vista e do que é importante na vida. Olhe eu nem quis casar. Prefiro a arte, gosto de inventar maquinetas. Quero lá saber do dinheiro, não é ele que nos traz a felicidade… mais importante é lutar pelos ideais em que acreditamos!!! Olhe, a justiça social, por exemplo! Quer valor mais importante nos tempos que correm?

Dono da casa, Camilo (aparte): Ui, vejam só para o que lhe deu agora! Justiça social! Tenho um primo comunista! Agora vem defender-me a democracia e a liberdade de imprensa, o direito à greve… Alguma vez, podia vir ao jantar desta noite? Jamais, em tempo algum! Dava logo cabo do meu pedido ao Bispo com estas ideias subversivas! Nem pensar!

Primo Pedro (prosseguindo): No outro dia estava a ler o catecismo e encontrei eco de uma bonita ideia que também defendo com unhas e dentes: “não pagar o justo salário a quem trabalha é um pecado que brada aos céus”.

Dono da casa, Camilo (aparte): Espero que não encontre o padre de Varzim! Se os dois se juntam, é o meu fim! (dirigindo-se ao primo) Primo Pedro, sem o querer estar a pôr fora de casa, vou ter de lhe pedir para se ir embora porque são quase horas de receber uns amigos que convidei esta noite para jantar. Espero que não me leve a mal.

Primo Pedro: Ora essa, primo Camilo, por quem sois. Vou já sair para não empatar. Bom jantar e até um dia destes!

Dono da casa, Camilo: Foi um prazer receber a sua visita. Volte sempre!


Apagam-se as luzes



ATO V

Cena 1

(Na noite escura, um carro preto avança na estrada, sob uma chuva constante. O Bispo Angélico, velho e cansado, apoiando-se numa bengala, vai conversando em jeito de confissão com o Sacristão Alfredo que o conduz a casa de Camilo.)

Bispo Angélico: Este tempo está horrível. Não apetece nada sair de casa!

Sacristão Alfredo: E por que aceitou o convite, senhor Bispo? O senhor já não  está em condições para andar nestas andanças.

Bispo Angélico: Tenho um pedido difícil a fazer ao Dono da Casa. Foi por isso mesmo que aceitei o convite. Mas pedir é algo difícil, é um homem tão rico, tão poderoso! Mas é o único homem a quem posso pedir isto.

Sacristão Alfredo: Não me diga que é por causa do teto da Igreja da Esperança que está a tombar em ruínas! Ah, a bela igreja do século XVII… Toda a gente a conhece, mas ninguém faz nada para a restaurar.

Bispo Angélico: É por isso mesmo, Alfredo. Sabes quem a mandou construir?
Foi um dos antepassados do Dono da Casa. Nos tempos antigos, quando um homem poderoso achava que tinha cometido demasiados pecados, fazia a promessa que mandaria construir uma igreja para dar paz ao corpo e à alma.

Sacristão Alfredo: Nos tempos antigos, mandavam construir-se igrejas, mas hoje há remédios para todas as doenças e argumentos para todas as consciências. Agora a doença já não é igual para pobres e ricos, todos têm acesso a regimes, análises, radiografias e tudo isso.

Bispo Angélico: Quem precisa de uma igreja em honra da Nossa Senhora da Esperança?

Sacristão Alfredo: Os homens ricos têm a saúde assegurada, as certezas burguesas varreram a inquietação e tornaram inútil a esperança.

Bispo Angélico: Por isso organizei uma lista das personalidades eminentes da cidade. Em vão! Bando de egoístas! O dinheiro que deram mal chegou para restaurar o altar-mor. Hoje em dia a piedade dos fiéis não chega ao teto! Ainda nos faltam cem contos para arranjar o teto… (suspirando) É tão difícil de pedir tanto dinheiro…

Sacristão Alfredo: É capaz de conseguir algo se o pedir ao Dono da Casa. Ele é um homem muito virtuoso…

Bispo Angélico: Achas realmente que posso confiar na generosidade de um homem virtuoso? Os homens virtuosos são sensatos e prudentes, a generosidade tem que algo insensato, é contrária aos hábitos dos homens prudentes.

Sacristão Alfredo: Acha então que os únicos generosos são os loucos ou os santos, não?

Bispo Angélico: Lembro-me que o Dono da Casa é um homem oficialmente virtuoso, e é com certeza um homem vaidoso, pois a minha longa experiência ensinou-me que os homens virtuosos são sempre extremamente vaidosos. Ele cultiva com muito cuidado a sua fama, e toma cuidado para que ela seja esplêndida e conhecida de todos. É triste estar a confiar na vaidade dos homens, e estou velho e cansado deste mundo. De repente, não me apetece fazer o pedido… (ouve-se o barulho do carro a travar)

Sacristão Alfredo: Chegámos, Bispo Angélico. Coragem. Nunca se sabe!

Apagam-se as luzes



ATO VI

Cena 1

(São oito da noite. O dono da casa, Camilo, e os seus convidados esperam a chegada do Bispo Angélico que tarda em chegar. Encontram-se na sala bem iluminada, há um barulho de fundo; os convidados conversam; a chuva bate nos vidros; Camilo está de pé, encostado à lareira acesa, medita, fala em frente do espelho)

Dono da casa, Camilo (aparte): Eu tenho de conseguir explicar ao Bispo Angélico que o novo padre é uma ameaça para a nossa ordem social, esta ordem que eu asseguro como dono dos campos, dos pomares, dos pinheiros e das vinhas, eu que vivo nesta casa herdada da minha família antiga e respeitada. Mas vai ser difícil fazer este pedido, arranjar as palavras certas…

(foco nos diferentes convidados que começam a impacientar-se com o atraso do Bispo)

Constância: Por que razão não começamos a jantar?

Mónica (com ar entendido, com o marido Antunes sempre atrás de si): Falta um convidado de honra que o senhor Camilo espera com grande ânsia.

Dono da casa, Camilo (aparte): Onde estará o Bispo? Porque estará ele atrasado? Logo no dia em que lhe quero pedir um grande favor!

(Diniz entra na sala de jantar e junta-se aos outros convidados)

Diniz (surpreendido): Ainda não começaram a jantar? Espera-se por alguém?

Henrique: Falta um convidado de honra que o senhor Camilo espera com grande ânsia.

Dono da casa, Camilo (aparte): Esta situação não pode durar mais! Este padre de sotaina rota pobre, sempre cada vez mais pobre para ajudar os seus paroquianos, essa gente que me trabalha a terra e não tem onde cair morta… pff, agora começam a achar-se importantes porque têm o apoio do padreco… vou ensinar a esse tolo com quantos paus se faz uma canoa. Ele que se ponha a pau!

Simão: Não estamos já todos?

Baltazar (com ar entendido): Falta um convidado de honra que o senhor Camilo espera com grande ânsia.

Dono da casa, Camilo (aparte): Como é que o povo pode aceitar a justiça do padre de Varzim? Nesta terra desde sempre submissa à minha autoridade e à minha justiça. Não faltava mais nada! Nas terras dos meus pais e dos meus avós a justiça nunca se discutiu dentro da igreja e não é agora que vai começar a sê-lo. O Bispo vai ter de me ajudar a pôr ordem nisto! Este padreco vai ter de desandar rapidamente…

(a empregada Dalva atravessa a sala com uma bandeja cheia de copos. Os convidados masculinos olham para ela, um deles, Simão, compõe a gravata e dirige-lhe a palavra)

Simão: Boa noite. Não a conheço de algum lado?

(a empregada Dalva olha para ele, não diz nada, vira a cabeça e segue em frente, saindo da sala; Simão fica dececionado e vai sentar-se perto do buffet frio)

Dono da casa, Camilo (aparte): Já são nove horas! Onde é que estará o Bispo? Preciso de ter o seu aval, preciso da sua opinião...Preciso do seu... Preciso dele aqui! Ainda dou em doido, se ele não aparece rapidamente. (o empregado Jacinto chega à sala e anuncia a chegada do Bispo Angélico)


Cena 2
O bispo entra na sala com um guarda-chuva preto molhado que agita para sacudir as gotas de água antes de o entregar ao empregado Jacinto.

Dono da casa, Camilo (indo ao encontro do Bispo): Entre, entre, Senhor Bispo! Estávamos à sua espera!
Dona da casa, Juvenália (seguindo o marido): Vamos para dentro, na sala, que está mais quentinho. Os convidados já estão todos aqui.

(os convidados falavam entre si e quando o Bispo chega, todos se levantam e vão ao seu encontro).

Francisco: Boa noite, Senhor Bispo! Como está o Senhor Bispo?

Cristina: O Senhor não está doente por causa da chuva, pois não? Este tempo invernal é complicado.

Bispo Angélico: Obrigada pelo cuidado. Não estou doente, não senhor, mas…

(grande estrondo no exterior, todos se calam e olham uns para os outros tentando perceber o que aconteceu. Correm de um lado para o outro, procurando ver pelas janelas o que aconteceu)

Francisco: Ui, que vejo eu? Um carro grande e preto e sumptuoso esbarrou contra o pilar esquerdo do portão!

Vários convidados (exclamam): Oh, oh! Que horror?

Outros convidados: Deve ter derrapado na lama!

Dona da casa, Juvenália: É preciso ver se há alguém ferido.

Mónica: Parece que não há feridos porque o chauffeur abriu a porta de trás e está a sair um senhor muito distinto sem qualquer mazela. Parece que está tudo bem!

(o Homem Importantíssimo sai do carro e debaixo do guarda-chuva entra pela plateia e chega à casa do Dono da casa entregando o seu guarda-chuva ao empregado Jacinto, depois de o sacudir e aceitando o convite dos Donos da Casa para entrar)

Donos da casa, Camilo e Juvenália (ao mesmo tempo e abrindo os braços em jeito de acolhimento): Entre, entre. Seja bem-vindo a esta casa. Sinta-se à vontade. Quem temos a honra de receber?

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas (apresentando-se num tom de voz cordial): Henrique de Távora e Mascarenhas, muito prazer!

Dono da casa, Camilo: Camilo de Figueiredo e Franco e a minha esposa Amélia Bobone de Figueiredo e Franco. O prazer é todo nosso. (nesse momento surge o filho João que observa com ar de poucos amigos o recém chegado)

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas (explicando o acidente): O meu carro derrapou na estrada e esbarrou contra o seu portão.

Dono da casa, Camilo: Não se preocupe. Vou já tomar providências para remediar o desastre. Jacinto, faça entrar o carro para o pátio e telefone para a garagem da cidade pedindo que aqui venha um mecânico reparar a avaria do carro. (virando-se para o Homem importantíssimo) Como a garagem ainda fica a meia hora de casa, proponho-lhe que se junte a nós e fique para jantar. É com prazer que o convido!

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Aceito encantado!

(percebe-se pela fisionomia das pessoas que todos ficam encantados com o novo convidado para o jantar; enquanto estas trocas de palavras se foram fazendo todos os convidados observam com curiosidade e com um ar simpático o Homem Importantíssimo, à exceção do filho dos Donos da Casa que a pouco e pouco se aproxima das primas Ana e Mariana)

Francisco: Quem é?

Prima Ana (murmurando à Prima Mariana): É muito simpático!

Prima Mariana: Muito!

Filho dos Donos da Casa, João (para as primas): Eu não gosto dele. A sombra dele parece ser um polvo.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Como te chamas, pequenote?

Filho dos Donos da Casa, João: Chamo-me João. Por que é que aa sua sombra tão grande?

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas (rindo): Quantos anos tens?

Filho dos Donos da Casa, João: Nove.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas : Ainda és muito novo.

Filho dos Donos da Casa, João (recuando um pouco, observando de novo a sombra do homem no teto e voltando a encarar o recém-chegado): Não gosto de si.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas (rindo): Ainda és muito novo. Quando cresceres, talvez sejas meu amigo.

Dono da casa, Camilo: João, o que é isso? Que maneiras são essas? Queira desculpá-lo, ainda não fez os dez… além disso está na hora de ir para a cama. Despeça-se, menino, de todos os convidados e vá-se deitar! (a mãe vem ter com o João e acompanha-o a sair da sala depois das despedidas)

Filho dos Donos da Casa, João: Boa noite a todos e até amanhã! (sai da sala com a mãe)

Dono da casa, Camilo: E agora proponho-vos que nos sentemos à mesa para jantar.

(todos se sentam à volta da mesa, o Homem Importantíssimo numa ponta e o Bispo na outra ponta, a prima Conceição senta-se ao lado do Homem Importantíssimo, a Mónica e o Antunes sentam-se ao lado dos Donos da Casa; as primas Ana e Mariana sentam-se ao lado do Bispo)

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Este tempo é um tempo de crise: estamos dominados pelo materialismo. Até nos campos, onde só devia reinar a espiritualidade, ouvimos constantemente falar de problemas materiais.

Mónica: É verdade. Hoje os poetas discutem os salários dos operários e o nível de vida dos países. É grave que este espírito esteja presente na arte, como a literatura, na ciência, na filosofia e nos jornais! Shakespeare, Camões e Dante falavam dos problemas da alma humana. E assim é que deveria continuar a ser!

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: O mais grave de tudo, é vermos que o espirito materialista e de revolta se infiltra não só nos católicos, mas também nos próprios padres. Ora o homem não é só matéria: é espírito também. Mas o nosso tempo só vê os problemas materiais.

Baltazar: É um tempo de revolta, os homens não querem aceitar! Paciência e resignação são palavras que perderam o sentido.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: O homem deste tempo quer que o reino de Deus seja deste mundo.

Bispo Angélico (ligeiramente incomodado): A Igreja não pode desinteressar-se do problema social.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: De acordo, de acordo. Eu conheço bem a doutrina da Igreja. A Igreja está no Mundo, logo, não o pode ignorar. E a sua missão é transcendente, compete-lhe guiar o Homem para o seu destino eterno. “ Dai a César o que é de César e dai a Deus o que é de Deus» - estas foram as palavras de Cristo num país ocupado. Não compete à Igreja empenhar-se na solução dos problemas materiais, solução aliás sempre imperfeita, transitória e duvidosa.

Bispo Angélico (em tom “bispal”): O mandamento da caridade é muito claro.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Sim, mas pode ser interpretado de muitas formas. E creio que hoje em dia muitos o interpretam mal: só conhecem a realidade material, como se o Homem vivesse só de pão. Veja o que aconteceu com os padres operários! Mas nem é preciso ir assim tão longe. Já vemos entre nós cristãos e padres que falam como comunistas.

Dono da Casa, Camilo (comenta satisfeito): Isso é verdade! Ainda me recordo do Abade de Varzim, o “padre da caridade”…

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Por falar nisso, nem acreditam no que vi hoje. Um espectáculo que me encheu de melancolia. Passei perto de uma igreja, a Igreja de Nossa Senhora da Esperança, que é uma bela obra do século XVII, mas está em ruínas! Discutem os católicos os problemas da habitação, mas não se preocupam com a casa de Deus! Isto na sua diocese, Senhor Bispo!

Bispo Angélico (primeiro corado, mas depois convicto): É verdade que a Igreja da Esperança está em ruínas… Mas acredite que é uma das minhas maiores preocupações! Preciso de encontrar uma solução, mas só posso contar com os que me podem ajudar...

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: De facto, de facto! Devemos a todo o custo conservar a herança do passado. A desordem reina no Mundo, mas não no nosso país, onde a ordem ainda consegue vencer a desordem!

Mónica: Estou completamente de acordo com o que diz. O nosso país, graças aos seus governantes, ainda se salva desse caos que reina por esse mundo fora! (o marido Antunes acena concordando)

Prima Conceição (maravilhada): Isso é verdade! Por isso é que a obra dos tricots trabalha para ajudar a Igreja neste tipo de obras… Conhece a obra dos tricots, não conhece?

Mónica: Ora, prima Conceição, quem não conhece a obra dos tricots? Pertence à Liga Internacional dos Necessitados que dirijo há bastante tempo.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas (com voz hesitante): Já ouvi falar mas não conheço bem…

Prima Conceição (maravilhada por estar no centro das atenções): sabe, uma vez por semana, as benfeitoras reúnem-se em minha casa e, enquanto falamos de tudo e de nada, fazemos tricots para os pobres. A tarde corre-nos leve e só fazemos uma pausa para beber um chá.

Dono da Casa, Camilo (aparte): A conversa está a tomar o sentido que eu queria. Está decidido. No final do jantar tenho de pedir ao Bispo Angélico para mudar o Abade de Varzim de freguesia. (olhou feliz à sua volta)

(O jantar já estava a acabar e a conversa subira meio-tom. Os criados dão muitas voltas à mesa.Apagam-se as luzes.)

ATO VII

Cena 1

(A seguir ao jantar, o Dono da Casa conduziu o Bispo e o Homem Importantíssimo para uma pequena sala, onde se sentaram os três a tomar café. A cepa da vinha ardia no fogão, a luz eléctrica presa às molduras iluminava as perdizes, as uvas e os limões das naturezas mortas, as velas brilhavam na mesa. A mesa era constituída por talheres de prata, e mais tarde pão e vinho.)

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Este café está muito bom!

Dono da Casa, Camilo: Muito obrigado. O café é o ponto de honra da refeição. Gosto que seja bem tirado. O Jacinto fá-lo muito bem!

Bispo Angélico: Está de facto muito agradável o café.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Mas voltando à Igreja da Nossa Senhora da Esperança. Só de pensar nela, fico com os olhos embaciados. Ver a casa de Deus naquele estado…

Bispo Angélico: Também eu sofro com aquela situação. Sabe, Camilo, que aquela igreja foi construída por um antepassado seu?

Dono da Casa, Camilo (surpreendido): Não me diga? A sério?

Bispo Angélico: Sim, sim. Consegui angariar recentemente fundos para restaurar o altar-mor, mas ainda faltam cem contos para restaurar o teto…

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Não podemos assistir ao desmoronamento da casa de Deus. Olhe, ponho já aqui cinquenta contos em cima da mesa.

Dono da Casa, Camilo (desabafando): Já que estamos aqui, entre nós, a falar destes problemas que afetam tão seriamente a nossa Igreja queria referir uma grande preocupação, recente, que surgiu com o novo pároco de Varzim.

Bispo Angélico: Sim, diga. O que se passa?

Dono da Casa, Camilo (baixando a voz): Ora, ainda não percebeu que a justiça divina funciona dentro da casa de Deus, por isso é tão importante repararmos o teto das igrejas que estão em mau estado, mas da justiça terrena tratamos nós.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Tem toda a razão, Camilo.

Dono da Casa, Camilo (baixando a voz): Anda com ideias de caridade, vive mais pobre que os pobres que defende assim, sem mais nem pra quê. Até apoiou o meu caseiro contra mim. Tenho para mim que seria bom mudá-lo de ares.

Bispo Angélico: Hum, estou a ver. Esse apoio ao seu caseiro foi uma afronta! Foi uma atitude imprudente da parte dele… não devia, não senhor.

Homem Importantíssimo, Henrique de Távora e Mascarenhas: Estes padres com tendência comunistas há que ter olho neles e manter a rédea curta. Todo o cuidado é pouco!

Dono da Casa, Camilo: Anda a ter uma má influência sobre os paroquianos que começam a ter ideias comunistas… a situação é deveras preocupante, senhor Bispo. Eu já nem durmo bem à noite. Venho sempre incomodado depois de ouvir as homilias. Só não deixo de ir à missa porque como sabe um padre não faz a igreja. Há sempre patinhos feios… no meio de patinhos bonitos!

Bispo Angélico: Pelo que diz só vejo uma solução, prometo-lhe aqui e agora mudar rapidamente o pároco de Varzim de freguesia. Esse apoio ao caseiro foi realmente uma atitude imprudente da parte dele que não podemos deixar passar.

Dono da Casa, Camilo (pegando num cheque e preenchendo-o): Olhe, senhor Bispo, e já agora antes que me esqueça passo-lhe o cheque de cinquenta contos para restaurarmos esse texto da igreja que tão sabiamente os meus antepassados financiaram! Tenho muito gosto em contribuir.

(Levantam-se os três, o Homem Importante e o Dono da Casa saem da sala conversando e o Bispo fica no meio da sala. Um olhar perdido, uma mão em cima do peito, um foco de luz nele e ouve-se a voz de Deus em off)

Voz de Deus em off: Angélico, Angélico. Já reparaste que o abade de Varzim foi vendido por um teto. É verdade que ninguém falou em troca nem em venda. É verdade que ninguém disse palavras chocantes. Mas vejo que não entendes bem o negócio em que acabaste de te envolver! Como se tivesses sido convencido por um hábil advogado! Compraste o que não quiseste comprar e vendeste o que não querias vender… Tenho dó de ti, aqui no Céu. Porque estás só e perdido e não soubeste lutar contra os hábeis discursos dos donos do Mundo!

Cai o pano.




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